Meu texto é autobiográfico - de acordo com o que minha memória me permitiu - e o título é baseado no livro As centopeias e seus sapatinhos (Milton Camargo, Ática/Scipione, 2007, 21ª edição). Ainda que possa fazê-lo com muita competência, não farei a revisão dele, porque gosto de me lembrar de como eu era quando comecei minha primeira graduação, na faculdade que eu queria, no curso que eu queria.
Decidi postar aqui, depois de quase três anos sem aparecer, porque hoje a versão final do meu TCC (tema/título: O papel social das editoras privadas brasileiras no processo de democratização do acesso ao livro: uma pesquisa bibliográfica. Minha nota foi 95/100, e minha defesa foi respeitada e muito elogiada!) foi entregue, e me emocionei demais! Pensei em toda a minha trajetória acadêmica, em toda a minha vida, em tudo que eu sou/fui... mas, principalmente, pensei (de novo) em todas as transformações que o livro me trouxe.
Boa leitura!
A
centopeia e seus livrinhos
Meus
amigos costumeiramente narram suas iniciações à leitura da palavra. Alguns têm
a terna lembrança da mãe lendo para eles enquanto ainda eram bem pequenos,
outros lembram de uma capa marcante, outros ainda foram marcados pela
literatura escolar. Tão costumeira quanto a narração dessas lembranças é minha
reação emudecida ao iniciarmos esse assunto.
Tenho
a meu favor minha memória traidora, que não me permite lembrar com a precisão
de meus amigos sobre minha iniciação à leitura da palavra. A lembrança mais
remota que tenho é de minha mãe com o livro As centopeias e seus sapatinhos,
de Milton Camargo. Minha mãe, miúda, constantemente dividida entre as tarefas
maternais, matriarcais e profissionais, narrava de forma terna e doce a
história da mamãe centopeia que levou sua filha pré-adolescente indecisa até a
sapataria da Dona Joaninha para que escolhessem seus muitos sapatinhos. Recordo-me
de achar muito divertido o desmaio da Dona Joaninha, quando a Dona Centopeia
disse que voltaria no dia seguinte para comprar os seus sapatos.
Uma
vaga lembrança da casa em que morávamos, que se mistura com a lembrança da
leitura do livro Os robôs perdidos da Capadócia, de Marilusa Moreira
Vasconcellos, faz com que eu me sinta um pouco menos acanhada pela traição de
minha memória, pois me lembro de sentir o frescor do chão vermelho
recém-encerado, com as portas e as janelas abertas nas tardes em que o vento
era manso.
Essas são minhas
duas memórias literárias da infância. As únicas. Mas a segunda me deixa ainda
mais satisfeita, porque minha mãe lia pra nós (meu irmão e eu) sempre após a
faxina da casa e enquanto o bolo de cenoura assava. A leitura era interrompida
para enchermos nossa barriguinha com aquele bolo molhadinho e cheio de
chocolate, que perfumava nossa casa e nossa vida sempre muito humilde. A partir
daí, a traição de minha memória é tamanha que retomo minhas lembranças
literárias quando já estou na 5ª série ginasial. Eram momentos familiar e financeiro
mais difíceis e me lembro de que o único livro que tínhamos em casa era um
romance bem adulto, com cenas de sexo explícito, mas que reli algumas vezes,
por não ter acesso a outro título. Ficava sentada na porta da casa da minha avó
por horas, consumindo aquele livro que um dia minha mãe me disse que eu não
poderia ler, pois o conteúdo era impróprio para crianças. Continuei a leitura,
escondida. Foram necessários muitos recuos, afastamentos e muitas voltas, para
que eu aprendesse a ler a “palavramundo”. Também sou traída por minha memória,
pois não me recordo de quando tive a percepção da importância da leitura do
mundo. Em contrapartida, minhas experiências me lembram diariamente da importância
fundamental de como todo meu contato com a leitura foi importante, mesmo que
ele esteja ainda perdido nos confins de minhas lembranças.
A partir do momento em que tomo consciência da leitura que faço do mundo, minha leitura da palavra começa a passar por transformações arrebatadoras e me leva a viver experiências incríveis, que eu julgava não pertencentes à minha capacidade.
Uma dessas
experiências narro sempre com os olhos marejados, pois, após quase duas décadas
longe de uma sala de aula, realizo o sonho de ingressar em uma universidade
federal. Uma das melhores do país. Sem a leitura da palavra e do mundo, esse
sonho jamais se realizaria.
Com a leitura da
palavra e do mundo, a vida muda! Adquire nuances mais claras, mais leves (e
também mais pesadas)…
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