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A centopeia e seus livrinhos


Escrevi esse texto -
A centopeia e seus livrinhos - no meu primeiro semestre na faculdade (2017), pra um trabalho de uma disciplina com a Profª Drª Daniervelin Pereira. Esse trabalho teve como ponto de partida o texto "A importância do ato de ler" (A importância do ato de ler, Cortez, 2017, 51ª edição). No mesmo semestre, depois de entregarmos o trabalho - e ele ser avaliado -, Daniervelin propôs para a turma produzirmos um ebook reunindo todos os memoriais de leitura que escrevo (obviamente ela respeitou quem não quis publicar o texto que escreveu). No final daquele semestre, o Memorial de Leituras nasceu no formato ebook e, junto com ele, o primeiro livro que levou meu nome em uma página de créditos. Em 2020, o LABED (Laboratório de Edição - UFMG) publicou no formato de caderno, uma edição impressa, que está disponível para retirada gratuita, no laboratório, mesmo.

Meu texto é autobiográfico - de acordo com o que minha memória me permitiu - e o título é baseado no livro As centopeias e seus sapatinhos (Milton Camargo, Ática/Scipione, 2007, 21ª edição). Ainda que  possa fazê-lo com muita competência, não farei a revisão dele, porque gosto de me lembrar de como eu era quando comecei minha primeira graduação, na faculdade que eu queria, no curso que eu queria.

Decidi postar aqui, depois de quase três anos sem aparecer, porque hoje a versão final do meu TCC  (tema/título: O papel social das editoras privadas brasileiras no processo de democratização do acesso ao livro: uma pesquisa bibliográfica. Minha nota foi 95/100, e minha defesa foi respeitada e muito elogiada!) foi entregue, e me emocionei demais! Pensei em toda a minha trajetória acadêmica, em toda a minha vida, em tudo que eu sou/fui... mas, principalmente, pensei (de novo) em todas as transformações que o livro me trouxe.

Boa leitura!


A centopeia e seus livrinhos

 

Meus amigos costumeiramente narram suas iniciações à leitura da palavra. Alguns têm a terna lembrança da mãe lendo para eles enquanto ainda eram bem pequenos, outros lembram de uma capa marcante, outros ainda foram marcados pela literatura escolar. Tão costumeira quanto a narração dessas lembranças é minha reação emudecida ao iniciarmos esse assunto.

Tenho a meu favor minha memória traidora, que não me permite lembrar com a precisão de meus amigos sobre minha iniciação à leitura da palavra. A lembrança mais remota que tenho é de minha mãe com o livro As centopeias e seus sapatinhos, de Milton Camargo. Minha mãe, miúda, constantemente dividida entre as tarefas maternais, matriarcais e profissionais, narrava de forma terna e doce a história da mamãe centopeia que levou sua filha pré-adolescente indecisa até a sapataria da Dona Joaninha para que escolhessem seus muitos sapatinhos. Recordo-me de achar muito divertido o desmaio da Dona Joaninha, quando a Dona Centopeia disse que voltaria no dia seguinte para comprar os seus sapatos.

Uma vaga lembrança da casa em que morávamos, que se mistura com a lembrança da leitura do livro Os robôs perdidos da Capadócia, de Marilusa Moreira Vasconcellos, faz com que eu me sinta um pouco menos acanhada pela traição de minha memória, pois me lembro de sentir o frescor do chão vermelho recém-encerado, com as portas e as janelas abertas nas tardes em que o vento era manso.

Essas são minhas duas memórias literárias da infância. As únicas. Mas a segunda me deixa ainda mais satisfeita, porque minha mãe lia pra nós (meu irmão e eu) sempre após a faxina da casa e enquanto o bolo de cenoura assava. A leitura era interrompida para enchermos nossa barriguinha com aquele bolo molhadinho e cheio de chocolate, que perfumava nossa casa e nossa vida sempre muito humilde. A partir daí, a traição de minha memória é tamanha que retomo minhas lembranças literárias quando já estou na 5ª série ginasial. Eram momentos familiar e financeiro mais difíceis e me lembro de que o único livro que tínhamos em casa era um romance bem adulto, com cenas de sexo explícito, mas que reli algumas vezes, por não ter acesso a outro título. Ficava sentada na porta da casa da minha avó por horas, consumindo aquele livro que um dia minha mãe me disse que eu não poderia ler, pois o conteúdo era impróprio para crianças. Continuei a leitura, escondida. Foram necessários muitos recuos, afastamentos e muitas voltas, para que eu aprendesse a ler a “palavramundo”. Também sou traída por minha memória, pois não me recordo de quando tive a percepção da importância da leitura do mundo. Em contrapartida, minhas experiências me lembram diariamente da importância fundamental de como todo meu contato com a leitura foi importante, mesmo que ele esteja ainda perdido nos confins de minhas lembranças.

A partir do momento em que tomo consciência da leitura que faço do mundo, minha leitura da palavra começa a passar por transformações arrebatadoras e me leva a viver experiências incríveis, que eu julgava não pertencentes à minha capacidade.

Uma dessas experiências narro sempre com os olhos marejados, pois, após quase duas décadas longe de uma sala de aula, realizo o sonho de ingressar em uma universidade federal. Uma das melhores do país. Sem a leitura da palavra e do mundo, esse sonho jamais se realizaria.

Com a leitura da palavra e do mundo, a vida muda! Adquire nuances mais claras, mais leves (e também mais pesadas)…


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