Pular para o conteúdo principal

Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac (Que mulher!)


Não vou mentir! Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac, não é um livro que “desce redondo”! Principalmente se você tem o mínimo de empatia com o outro e respeito pela vida. Não é um livro que “desce redondo”, mas é um livro necessário, fortalecedor e esclarecedor! Esse livro escancara a repressão sexual que mata, fere, subjuga, aprisiona e agride cada vez mais pessoas, principalmente pessoas como Luísa, que não se comportam de acordo com o gênero sexual com o qual nasceram.

Sou gerada eu, filha de um rato.

Luísa Marilac e sua biógrafa, Nana Queiroz, me colocaram diante de vivências sofridas, mas narradas de forma que eu sempre quisesse avançar para a próxima página. Não que me deixasse com aquele desejo mórbido, que alguns têm, por mais desgraça... De jeito nenhum! Me deixou ávida por descobrir quão forte uma travesti* pobre, principalmente, PRECISA ser para não morrer antes dos 35 anos (ou a qualquer momento).
 A Luísa era quem estava em terra. Não tinha volta. E Luísa era puta e foi pra noite trabalhar.

Desde seu estupro – com penetração – por um familiar, quando ainda era uma criança, até o (re)encontro com sua cadelinha Princesa, a vida de Luísa passou por muitas mortes, mas também por muitos (re)nascimentos. Entre essas mortes e esses (re)nascimentos, sempre precisou lidar com membros de uma sociedade hipócrita e reprimida emocional e sexualmente, o famoso “cidadão de bem”.

Naturalmente, nunca parei de desejar homens, mas no tempo em que frequentei a comunidade [de uma igreja evangélica], me esqueci do sexo. Senti que poderia passar a vida me distraindo do meu tesão. Fiquei cerca de um ano nesse estado. Até o dia que fui usar o banheiro da igreja e o pastor estava me esperando, pau duro pendurado para fora da braguilha. [Luísa aos 14 anos. QUATORZE ANOS!]

As experiências de Luísa Marilac são contadas por Nana Queiroz com muita desenvoltura e fluidez, e são histórias com homens que se dizem heterossexuais mas que buscam prazer com travestis e, vão desde o homem casado que fuma craque e dá uma rebolada na marcha do carro (Sim! Nos sentidos literal e sexual!), ao jogador de futebol da seleção italiana.

Essas experiências sexuais fazem parte do cotidiano da maioria dos travestis pobres (principalmente) que, muitas vezes abandonadas pelas famílias e pela sociedade, são obrigadas a se prostituírem e, desta forma, ficam à mercê da violência e do descaso. Esse cotidiano é retratado com muita clareza mas, repito, não de forma mórbida!

Fui rejeitada pela minha família – a não ser que minha conta bancária dissesse o contrário. Já vi secretárias de agência jogarem meu currículo no lixo [...] Já tentei todas as ocupações desprestigiadas que puder imaginar. E acabei puta.

O livro traz também histórias que envolvem muito amor, amizade e companheirismo. Não fosse por essas histórias e as pessoas envolvidas nelas, talvez Luísa Marilac não tivesse conseguido se manter de pé! Gosto muito quando ela fala do avô materno, José Lopes... Ao ler, parecia que o amor entre ela e ele era palpável, visível... Coisa linda demais!

Eu era ele. Era forte por culpa dele, me sentia amada por conta dele. E ele, graças a mim, deve ter encontrado seu caminho pro céu. Porque, ao me amar, meu avô alcançou a redenção.

O texto de Luísa e Nana (Me permitam essa “intimidade”, meninas!), corroboraram tudo que li no livro “Novas formas de amar” da, também maravilhosa, Regina Navarro Lins, sobre autonomia, preconceito, sentimentos reprimidos e sobre violência. São dois livros que, juntos ou não, podem mudar o coração de muita gente e, assim, deixar muita gente linda viver.

Foi difícil, pra mim, escrever sobre esse livro porque as histórias de Luísa (também) são histórias comuns na sociedade. Não são casos pontuais e incomuns de violência e transfobia. São histórias que acontecem todos os dias e, em sua maioria, com finais trágicos!
Tenho plena consciência de que não possuo lugar de fala sobre esse tema mas, ainda assim, penso que posso contribuir de alguma forma... Mesmo que seja divulgando uma livro como esse, que traz a realidade da maioria das travestis brasileiras.

Leia as memórias dessa mulher incrível, que resistiu com coração bom mesmo quando, aos 16 anos, ganhou 1kg de carne como indenização por um acidente gravíssimo que sofreu durante seu horário de trabalho, na atacadista Zamboni.
Mesmo depois que sua mãe tomou seu apartamento e a colocou para fora, junto com Princesa, sua cadelinha resgatada.

A história de Luísa tem muito amor, muita força, amizade e luta! Tenho certeza de que também é muito inspiradora!

Luísa e Nana, obrigada por suas palavras generosas e esclarecedoras. Luísa, obrigada por ainda ter em seu coração que o bom também é possível. Força (ainda mais), mulher!

Carlos, meu amor... Obrigada por mais essa indicação maravilhosa! Te amo!



*Travesti: termo utilizado neste texto conforme publicado no livro.

Ficha técnica
Título: Eu, travesti: memórias de Luísa Marilac
Autor: Luísa Marilac e Nana Queiroz
Editora: Record 

Este texto foi revisado por Lorena Almeida.

Com carinho, Cotovia Literária!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os machões dançaram (E bem mal, hein?!)

Mulher é minha causa. Mulher é meu dogma. Mulher sempre foi minha cachaça e meu comunismozinho.   No livro final da trilogia “Modos de macho & modinhas de fêmea” Xico Sá publica crônicas inéditas e também crônicas já reproduzidas no jornal El País e Folha de São Paulo. São crônicas sobre amor e sexo, que a maioria das pessoas podem julgar terem sido escritas para o público feminino. Mas se o público masculino se aventurasse nas leituras dessas crônicas, teriam muito a aprender, hein?!   O livro é uma afronta ao machismo e uma apologia à liberdade de amar, à sensibilidade e, principalmente, à mulher! Não, não é a sensibilidade de chorar por tudo, de mimimi… é sensibilidade no olhar, no tocar, no não tocar...   Em uma das primeiras crônicas, ele elogia Clint Eastwood (Quando a foto foi publicada, em 2012, o ator tinha 82 anos.), por recusar o uso de photoshop em sua foto na capa da revista “M” (Suplemento do jornal francês “Le Monde”). Na mesma crônica, ele menciona a

a bruxa e o espantalho (Que belezura!)

Costumo dizer que investir em um livro de imagem é uma excelente ideia, porque esse tipo de livro é infinito. Principalmente se o leitor for uma criança, porque a cada vez que a história for lida pela criança ou contada pra ela, a história será recebida por uma perspectiva diferente. Mais ou menos como quando relemos um livro e, após cada releitura, fazemos uma interpretação diferente dele. A bruxa e o espantalho é um livro de imagem, com capa dura, relativamente barato, traz as espetaculares ilustrações do artista mexicano Gabriel Pacheco  e que foi  publicado no Brasil pela Editora Jujuba .  As ilustrações de Gabriel Pacheco narram a história de uma bruxa que voava em “bando” com outras bruxas (Assim como as aves!) utilizando seu monociclo, enquanto as outras bruxas utilizavam suas vassouras. Mas em algum momento da viagem, essa bruxa diferentona se distrai com um passarinho, cai do seu meio de transporte diferentão e, além de ser duramente criticada, é excluída do bando

“Mas e eu? Quem vai cuidar de mim?” Ah... Nisso eu não tinha pensado!

Acredito que o (para)texto da quarta capa do livro Ah... nisso eu não tinha pensado! foi bem econômico ao dizer que a narrativa e as imagens falam “apenas” sobre solidariedade... acreditem senhoras e senhores! Esse livro vai muito além de solidariedade! A história começa com a descrição de uma cidade devorada por concreto e asfalto, e que antecede a história de um velhinho, morador de uma casa que é antiga e acolhedora, para os padrões das construções ao redor dela; com duas cerejeiras no quintal, um grilo morando perto da lareira e uma entrada sem muros e grades, sua casa ocupava um lugar desejado por uma grande construtora, que já o havia notificado sobre a desapropriação e também sobre o despejo. Mas mesmo que construtora tivesse prometido a ele um lugar adequado para morar, o velhinho estava muito triste, porque para ele, o lugar adequado era a casa dele! Ele a tinha construído, lá tinha vivido com sua mulher e seus filhos, lá guardava todas as suas lembranças...